3/3: A revolução das fêmeas
Na ciência, nós
estamos sempre descobrindo fatos que nos fazem revisar as teorias e repensar em
tudo que sabíamos. Por volta de 1980, as técnicas de biologia molecular e os
testes de paternidade se tornaram acessíveis e os pesquisadores puderam testar
a paternidade dos filhotes não só em humanos, mas em várias outras espécies de
animais. Qual não foi a surpresa da comunidade científica ao perceber que entre
os filhotes de aves supostamente monogâmicas havia um monte de bastardinhos!?
Mais especificamente, em 90% das espécies de aves consideradas monogâmicas
foram encontrados filhotes que não eram dos pais que os criavam. E não é só
isso! Mesmo nas espécies majoritariamente monogâmicas, cerca de 11% dos filhotinhos
eram de outros macho [1].
Sendo assim, contrariando o que se esperava de acordo com os papéis sexuais tradicionais,
fêmeas da maioria das espécies de aves estavam copulando com mais de um (as
vezes vários) machos durante seu período reprodutivo. No jargão técnico, essas
fêmeas são conhecidas como poliândricas (poli = muitos, andros =
macho).
Casal de aves da espécie Morus bassanus, monogâmicos sociais que nem sempre são fiéis. [Fonte da imagem]
Após as
descobertas com aves, o número de estudos que encontraram poliandria nas fêmeas só cresceu. Em 2013, uma importante revista
científica lançou uma edição inteira só com artigos explorando as implicações
da poliandria para pesquisas sobre evolução por seleção sexual [2]. No ano seguinte, um artigo de revisão confirmou que a poliandria é
amplamente encontrada em várias espécies animais, incluindo invertebrados e
vertebrados [3]. Porém, o número de fêmeas poliândricas em cada população e a quantidade de
machos com que cada uma delas copula varia bastante, tanto entre diferentes
espécies como dentro de populações da mesma espécie. Na prática, isso significa que é possível encontrar na natureza fêmeas
monogâmicas, pouco poliândricas ou muito poliândricas. A avalanche de
informações sobre poliandria trouxe consigo duas perguntas inquietantes:
(1) Por que as
fêmeas são poliândricas?
(2) Quais as
vantagens que levaram à evolução da poliandria?
As perguntas
acima vêm sendo exploradas e respondidas ao longo dos últimos dez anos, ou
seja, estamos apenas no início de uma longa jornada científica. Já sabemos,
porém, que a poliandria pode aumentar a variabilidade genética da prole,
gerando filhotes mais resistentes às adversidades do ambiente, incluindo o
ataque de parasitas. A poliandria também é vantajosa quando machos oferecem
comida em troca de sexo, já que quanto mais parceiros sexuais uma fêmea tiver,
mais recursos alimentares ela poderá acumular. Há espécies em que machos matam
os filhotes de outros machos, tanto para eliminar os descendentes de um rival
como para fazer com que fêmeas entrem no cio novamente. Como forma de evitar o
assassinato de filhotes, fêmeas copulam com vários machos do bando e geram
dúvidas sobre quem é o verdadeiro pai dos filhotes ― dessa forma, machos não
matam filhotes que podem ser deles. Fêmeas podem também aceitar copular com
machos insistentes ou assediadores quando o esforço para tentar afastá-los é
alto, um comportamento conhecido como poliandria de conveniência. Por fim,
contrariando o que se imaginava, a produção de esperma parece não ser
ilimitada. Machos podem não ter esperma suficiente para fecundar todos os
gametas das fêmeas, especialmente se eles já copularam com muitas outras fêmeas
ou se estão debilitados fisicamente. Nesses casos, o sucesso reprodutivo das
fêmeas passa a depender, em parte, do número de machos com os quais elas
copularam, pois será necessário acumular esperma de muitos machos para garantir
a fecundação de todos os óvulos. Em todas as situações acima, as fêmeas se
beneficiam em copular com muitos machos, ao contrário do previsto pelo
paradigma Darwin-Bateman e pelos papéis sexuais tradicionais.
Nos bonobos (Pan paniscus),
parentes próximos dos humanos, as fêmeas são altamente poliândricas [Fonte da imagem]
Muito se
avançou no conhecimento sobre a poliandria, mas ainda falta muito a descobrir.
Nesse cenário é que se inseriu minha tese de doutorado, por exemplo.
Agora que vocês
já sabem o que é seleção sexual e como ela funciona, estamos prontos para
conhecer algumas das pesquisas sensacionais feitas sobre sexo. No próximo post,
tratei a primeira história das Sex News!
Érika M. Santana
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Fontes citadas no texto:
1- Griffith, S.C., Owens, I.P.F.,
Thuman, K.A. (2002) Extra pair paternity in birds: a review of interspecific
variation and adaptative function. Molecular Ecology, 11:2195-2212.
2-
Pizzari, T., Wedell, N. (2013) The polyandry revolution. Philosophical
Transactions of the Royal Society B, Volume 368, Issue 1613.
3-
Taylor, M.L., Price, T.A.R., Wedell, N. (2014) Polyandry in nature: a global
analysis. Trends in Ecology & Evolution, 29:376-383.